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A constitucionalidade do salário mínimo como piso salarial
Fonte: Consultor Jurídico
por Rafael Rios Monteiro
Alvo de constantes debates nos tribunais pátrios, a questão relativa à (in)constitucionalidade dos pisos salariais múltiplos do salário mínimo, apesar das novas diretrizes jurisprudenciais, ainda não tem resolução pacífica.
Mormente nas décadas de 60 e 70, várias categorias profissionais estipularam, através de lei, seus pisos salariais em múltiplos de salário mínimo, como, por exemplo, os engenheiros agrônomos que, mediante a Lei 4.950-A/66, estipularam o piso salarial de 6 ou 8 salários mínimos, dependendo da carga horária de labor.
Com o advento da vigente Carta Magna em 1988, essa espécie de piso de categoria profissional passou a ser questionada, passando a sofrer diversas argüições de inconstitucionalidade, ainda que de forma incidental (no âmbito de cada caso concreto; e, não, de maneira ampla e irrestrita). O fundamento maior dessas argüições encontrava-se no inciso IV do artigo 7º da Constituição Federal de 1988:
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(omissis)
IV — salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; (grifou-se)”
Melhor explicando, passou-se a defender, por conta do dispositivo constitucional supra, que a estipulação de pisos de categoria profissionais em múltiplos do mínimo era vedada, justamente, pela impossibilidade de vinculação deste para qualquer fim.
A propósito, observe-se o posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho a respeito:
A vinculação do piso salarial dos profissionais ao salário mínimo, para efeito de sua correção automática, não se harmoniza com o comando do artigo 7º, IV, da Constituição Federal. (TST; RR 616916/1999.9, 2ª Turma, Min. José Simpliciano Fernandes, DJ. 25.11.2005)
Todavia, uma corrente jurisprudencial antagônica, com fundamento no mesmo dispositivo constitucional, formou-se no sentido de recepção pela atual ordem constitucional dessa forma de estipulação de piso salarial, passando a declarar constitucionais as leis que assim o estabeleciam. Veja-se o exemplificativo acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal, que deixa claro os fundamentos desta corrente:
A vedação da vinculação do salário mínimo, constante do inciso IV do artigo 7º da Carta Federal, visa a impedir a utilização do referido parâmetro como fator de indexação para obrigações sem conteúdo salarial ou alimentar. Entretanto, não pode abranger as hipóteses em que o objeto da prestação expressa em salários-mínimos tem a finalidade de atender as mesmas garantias que a parte inicial do inciso concede ao trabalhador e a sua família, presumivelmente capazes de suprir as necessidades vitais básicas. (STF; RE-170.203-6-GO, 1ª Turma, Min. Ilmar Galvão, DJ 15.04.94)1.
Assim, instalada estava a divergência jurisprudencial acerca da questão. É verdade que a corrente adepta da constitucionalidade dos pisos salariais múltiplos do mínimo teve um maior número de seguidores. Porém, como as declarações de constitucionalidade restringiam-se, especificamente, a cada caso concreto, cada órgão judiciário estava “livre” para proferir o entendimento que mais lhe afeiçoasse ao seu sentimento de Justiça.
Ocorre que o debate em tela parece ter ganhado novo fôlego. E o responsável por reacender a discussão é o recentíssimo posicionamento do próprio Supremo Tribunal Federal, consubstanciado na sua 4ª Súmula Vinculante:
Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial.
A princípio, a redação do entendimento jurisprudencial é bastante clara: é defeso utilizar o mínimo como índice de reajuste de vantagem de servidor público e de empregados, exceto se a própria redação constitucional assim permitir. Ao fim da mencionada súmula, tem-se, também, que o magistrado ou tribunal não pode substituir o mínimo nos casos em que o mesmo deve, impreterivelmente, ser utilizado como base de cálculo.
Partindo-se dessa premissa, em uma análise perfunctória, poder-se-ia dizer, de uma vez por todas, que, se não houver ressalva constitucional, os pisos salariais que utilizam o mínimo como base cálculo, tal como o piso previsto pela Lei 4.950-A/66, estão com seus dias contados.
De uma vez por todas, porque o entendimento jurisprudencial do STF, nos moldes em que foi exarado (Súmula Vinculante), de acordo com o artigo 103-A2 da Constituição Federal, acrescentado pela Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional 45/04), vincula todo o Poder Judiciário, bem como os órgãos da administração pública.
Dessa maneira, encerrado estaria o debate acerca da impossibilidade de estipulação de pisos salariais em múltiplos de salários mínimos. A questão ficaria restrita à existência de ressalva constitucional, o que, ao que aparenta, não é o caso. Não há ressalva expressa na Constituição Federal, permitindo esse tipo de estipulação de piso salarial.
Entretanto, a análise da mencionada Súmula Vinculante não deve ser feita de maneira tão superficial.
Em primeiro lugar, apesar de trazer um preceito geral que impossibilita a utilização do salário mínimo como indexador, a 4ª Súmula Vinculante do STF teve como origem outra discussão, que não a referente ao piso salarial; mas, sim, a relativa à base de cálculo do adicional de insalubridade, que, nos termos do artigo 192 da CLT3 e das Súmulas 17 e 228 do TST4, era o salário mínimo.
Destarte, o cerne da elaboração do referido entendimento jurisprudencial não era o piso salarial estipulado em múltiplos do salário mínimo e, sim, a base de cálculo do adicional de insalubridade.
Em segundo lugar, por ser deveras recente, ainda não há consolidação da interpretação da mencionada súmula do STF, já que, mesmo que especificamente em relação ao adicional de insalubridade, sua aplicação mostra-se confusa. A 7ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, manteve a utilização do mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade até que a questão seja regulamentada, definitivamente, por lei específica. Veja-se5:
I) ADICIONAL DE INSALUBRIDADE BASE DE CÁLCULO SALÁRIO MÍNIMO (CLT, ART. 192) DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE SEM PRONÚNCIA DE NULIDADE (UNVEREINBARBEITSERKLARUNG) SÚMULA 228 DO TST E SÚMULA VINCULANTE 4 DO STF.
1. O STF, ao apreciar o RE-565.714-SP, sob o pálio da repercussão geral da questão constitucional referente à base de cálculo do adicional de insalubridade, editou a Súmula Vinculante 4, reconhecendo a inconstitucionalidade da utilização do salário mínimo, mas vedando a substituição desse parâmetro por decisão judicial. Rejeitou-se, inclusive, a tese da conversão do salário mínimo em sua expressão monetária e aplicação posterior dos índices de correção dos salários, uma vez que, sendo o reajuste do salário mínimo mais elevado do que a inflação do período, restariam os servidores e empregados postulantes de uma base de cálculo mais ampla prejudicados ao receberem como prestação jurisdicional a redução da vantagem postulada.
2. Assim decidindo, a Suprema Corte adotou técnica decisória conhecida no direito constitucional alemão como declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade (Unvereinbarbeitserklarung), ou seja, a norma, não obstante ser declarada inconstitucional, continua a reger as relações obrigacionais, em face da impossibilidade de o Poder Judiciário se substituir ao legislador para definir critério diverso para a regulação da matéria.
3. Nesse contexto, ainda que reconhecida a inconstitucionalidade do art. 192 da CLT e, por conseguinte, da própria Súmula 228 do TST, tem-se que a parte final da Súmula Vinculante 4 do STF não permite criar critério novo por decisão judicial, razão pela qual, até que se edite norma legal ou convencional estabelecendo base de cálculo distinta do salário mínimo para o adicional de insalubridade, continuará a ser aplicado esse critério para o cálculo do referido adicional, salvo a hipótese da Súmula 17 do TST, que prevê o piso salarial da categoria, para aquelas categorias que o possuam (já que o piso salarial é o salário mínimo da categoria).Recurso de revista provido. (TST — RR 1150/2005-086-15-00, 7ª Turma, Min. Ives Gandra Martins Filho, DJ. 23.05.2008)
Ora, mas não é vedada a estipulação pelo Judiciário do mínimo como indexador, de acordo com a proibição expressa pela 4ª Súmula Vinculante?
E mais, voltando-se à questão do piso salarial, como ficará o seu cálculo, se for considerada inconstitucional a base de cálculo? Se se levar em consideração o entendimento exarado pelo TST, o salário mínimo ainda será levado em consideração, já que para o piso salarial não há regulamentação legal específica.
Nesse diapasão, não obstante a clareza da redação da súmula, tem-se que, hodiernamente, não é seguro aduzir que os pisos salariais estipulados em múltiplos do salário mínimo afrontam a ordem jurídica estabelecida pela vigente Carta Magna, mormente quando o próprio STF já declarou, com base no art. 7, IV, da CF/88, a constitucionalidade desse tipo de piso salarial.
Destarte, o debate não está encerrado e, pelo visto, caberá, tão somente, à Suprema Corte sua solução definitiva.
Notas de rodapé
1. No mesmo sentido, RE-201297-DF/STF; RE 235643-PA/STF e RE 189256-CE/STF.
2. Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§1º — A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§2º — Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§3º — Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.
3. Art. 192. O exercício de trabalho em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério do Trabalho, assegura a percepção de adicional respectivamente de 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento) do salário mínimo da região, segundo se classifiquem nos graus máximo, médio e mínimo.
4. SÚMULA Nº 17/TST — ADICIONAL DE INSALUBRIDADE — RESTAURADA: O adicional de insalubridade devido a empregado que, por força de lei, convenção coletiva ou sentença normativa, percebe salário profissional será sobre este calculado.
SÚMULA Nº 228 — ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO — NOVA REDAÇÃO: O percentual do adicional de insalubridade incide sobre o salário mínimo de que cogita o artigos 76 da CLT, salvo as hipóteses previstas na Súmula 17/TST.
5. Acórdãos do TST nesse sentido: RR – 771/2004-022-09-00; RR – 955/2006-099-15-00; AIRR e RR – 553/2005-104-15-00; RR – 1118/2004-005-17-00; RR – 3701/2005-007-09-00; e RR – 1814/2004-010-15-00.